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De “A natureza selvagem”

Niterói, 19 de junho de 2011


(Christopher Johnson McCandless em frente ao ônibus mágico)


Eu não o conhecia! Por mais que já tivesse visto, o conheci neste final de tarde de junho. Christopher Johnson McCandless. Um jovem, um apaixonado, um idealista, leitor de Tolstói e Thoreau.

Viveu 24 anos, e quem poderá dizer que viveu pouco? Ou que viveu muito? Ele viveu sua existência, mesmo que ela tenha sido contabilizada em um espaço tão curto de tempo.

Pessoas como esse jovem escrevem suas vidas com sangue, até a última gota; o que sempre admirou Nietzsche. E aqueles que por algum motivo chegam a conhecer seu epitáfio o tomam por santo.

Um santo jovem!

Se o céu existir, que você esteja nos braços Daquele que todas as coisas compreende!

E que eu, de alguma forma, saiba ter a vida tão completa quanto a sua...

"(...) Sem jamais ter de voltar a ser envenenado pela civilização, foge e caminha sozinho pela terra para se perder na floresta." (Christopher J. McCandless)

"A felicidade só é real quando compartilhada." (Christopher J. McCandless pouco antes de morrer)

PS: Quem quiser conhecer sua fantástica-trágica história: http://www.christophermccandless.info/

Niterói, 14 de maio de 2011

Esta, então, é a última carta escrita por nossa apaixonada freira, ao seu amante francês que nunca não lhe correspondia. O seu amor ficou eternizado nestas cartas, e pergunto-me que fim teve Mariana. Morreu ao escrever a última carta por tanto amar? Se enforcou em seu próprio quarto por tanto amar? Ou vendeu sua alma ao diabo por tanto amar? Pois não importa: ela muito amou... e isso já justifica todas as coisas!!!


Quinta Carta

por Mariana Alcoforado

“Escrevo-lhe pela última vez, e espero que você perceba – pela indiferença de termos e de atitude desta carta – que você conseguiu enfim me convencer de que já não me ama, e de que portanto eu não devo mais amá-lo. Enviarei, pois, na primeira oportunidade, tudo o que me resta de seu. Não tema que eu ainda vá lhe escrever. Não colocarei sequer seu nome no pacote. Encarreguei Dona Brites de todos esses detalhes, ela que já estava se acostumando a outro tipo de confidências, tão diferentes disso. As providências dela serão menos suspeitas que as minhas. Ela tomará o cuidado necessário para garantir que você receba o retrato e as pulseiras que me deu.

Mas quero que você saiba que, já faz alguns dias, tenho sentido vontade de queimar e despedaçar essas provas de amor que já me foram tão queridas. Por outro lado, tenho demonstrado tanta fraqueza que você pode não acreditar que eu seja capaz de chegar a esse ponto. Quero sentir ao máximo a angústia de me separar delas, e que isso cause pelo menos alguma irritação em você.
Confesso, para vergonha minha e sua, que me vi mais apegada a essas futilidades do que quero lhe dizer, e que precisei de novo reunir todas as minhas forças para me separar de uma delas em particular, mesmo quando já me gabava de não estar mais tão ligada a você.

Mas, com tantos motivos, chega-se sempre onde se quer. Pus tudo nas mãos de Dona Brites. Quantas lágrimas me custaram essa decisão! Depois de mil impulsos e mil incertezas que você nem imagina, e que não vou lhe explicar, implorei a Dona Brites que não me volte a falar nelas, que nunca mais me entregue nenhuma delas, mesmo que eu peça para vê-las só mais uma vez, e, por fim, para enviá-las sem me avisar.

Não percebi o exagero do meu amor senão quando fiz todos os esforços para me curar dele; e acho que não ousaria tentar se pudesse prever tanta dificuldade, tanta violência. Estou convencida de que teria sido menos angustiante continuar a amá-lo, apesar de sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que amava você menos do que à minha própria paixão, e senti uma angústia horrível por ter que combatê-la, depois que sua atitude indigna tornou você odioso para mim.
O orgulho comum às mulheres não me ajudou a tomar decisões contra você. Meu Deus! Suportei seu desprezo, e teria suportado seu ódio, e todo o ciúme que seu amor por uma outra mulher despertaria em mim. Pelo menos teria uma paixão qualquer para combater. Mas sua indiferença é insuportável. Seus impertinentes protestos de amizade, e a ridícula civilidade de sua última carta me fizeram ver que você recebeu todas as outras que lhe escrevi, e que, embora tenha lido todas, elas não perturbaram em nada seu coração. Ingrato! Minha loucura ainda é tamanha a ponto de eu ficar desespera por não poder me iludir achando que elas não chegaram até você, que não lhe foram entregues.

Detesto sua franqueza. Por acaso eu lhe pedi para me dizer a verdade nua e crua? Por que não me deixou com minha paixão? Não precisava ter escrito, eu não estava à procura de explicações. Já não me basta a infelicidade de não ter conseguido de você o cuidado de não me iludir? Seria necessário também não poder mais lhe perdoar? Fique sabendo que estou convencida de que você não merece meus sentimentos, e que agora conheço toda a sua perversidade.

Mas se tudo o que fiz por você pode merecer alguma consideração de sua parte quando eu lhe pedir algum favor, imploro para que não me escreva mais, e para que me ajude a esquecê-lo completamente. Se você demonstrasse alguma tristeza, por pouca que fosse, ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; mas talvez também sua confissão e seu arrependimento me causassem desgosto e raiva, e tudo isso poderia de novo me inflamar.

Por isso, não interfira nos meus atos; sem dúvida você destruiria todos os meus projetos, fosse lá como quisesse interferir neles. Não me interessa o destino dessa carta. Não perturbe o estado de espírito que venho me preparando. Parece que você consegue viver sem culpa pelo mal que me causou, qualquer que tenha sido sua intenção de me magoar. Não me tire dessa incerteza. Espero, com o tempo, transformá-la em alguma tranqüilidade. Prometo não odiar você – desconfio muito de sentimentos violentos para ousar alimentá-los.

Estou certa de que encontraria aqui no meu país um amante melhor e mais fiel. Mas quem poderá me amar? A paixão de outro homem conseguiria me envolver? Por acaso a minha conseguiu ter algum efeito sobre você? Já não tenho provas de que um coração apaixonado nunca mais esquece quem lhe revelou emoções que ele não conhecia mas de que era capaz? De que todos os seus impulsos estão ligados ao ídolo que criou para si mesmo? De que suas primeiras impressões e suas primeiras feridas não podem ser nem curadas nem apagadas? De que todas as paixões se oferecem para ajudá-lo, e se esforçam para preenchê-lo e alegrá-lo, prometem-lhe em vão um afeto que ele não encontrará mais? De que todos os prazeres que ele procura, sem nenhuma vontade de encontrar, não servem senão para lhe mostrar que nada lhe é mais cara que a lembrança de seu sofrimento? Por que você me fez conhecer a imperfeição e o desencanto de uma união que não duraria eternamente, e a angústia que resulta de um amor violento que não é correspondido? E por que uma vontade cega e um destino cruel insistem quase sempre em nos ligar àqueles que só por outros se interessam?
Mesmo que eu pudesse esperar algum divertimento de um novo namoro, e que encontrasse alguém sincero, sinto tanta pensa de mim mesma que teria muito escrúpulo de levar nem que fosse o último homem do mundo ao estado em que você me reduziu. E embora eu ao tenho obrigação nenhuma de lhe guardar respeito, não conseguiria me decidir a uma vingança tão cruel contra você, mesmo que, por uma mudança imprevista, isso dependesse de mim.

Procuro nesse momento desculpar você, e sei muito bem que uma freira não deve ser amada; mas acho que, se a razão fosse usada no momento da escolha, devia-se preferi-las às outras mulheres – nada as impede de pensar incessantemente em sua paixão, nem se deixar distrair por mil coisas que dispersam e ocupam as outras. Imagino que não deve ser muito agradável ver aquelas a quem se ama sempre distraídas por futilidades; e é preciso ter bem pouca sensibilidade para suportar, sem irritação, ouvi-las falar o tempo todo de reuniões, enfeites e passeios. Vive-se constantemente exposto a novos ciúmes, porque elas não conseguem se livrar de certos olhares, certos favores, certas conversas. Quem pode assegurar que nessas ocasiões elas não experimentem algum prazer, e que apenas aturem os maridos, com extremo desgosto e má vontade? Como elas vão desconfiar de um amante que não lhes cobre tudo isso, que acredite facilmente, e sem preocupação, em tudo o que disserem, e que as veja, confiante e tranquilo, sujeitas a todas essas obrigações!

Mas não pretendo provar-lhe, com boas razões, que você devia me amar. Esses são meios muito sórdidos, mas já usei outros bem melhores que não deram resultado. Conheço muito bem o meu destino para tentar mudá-lo. Serei uma infeliz pelo resto da minha vida. Já não era quando via você todos os dias? Morria de medo de que você não fosse fiel; queria ver você a todo instante, mas isso não era possível; ficava preocupada com o perigo que você corria ao entrar nesse convento; mal vivia quando você estava em serviço; me desesperava por não ser mais bonita e mais digna de você; reclamava contra mediocridade da minha condição; achava sempre que o apego que você parecia ter a mim podia lhe trazer problemas; tinha medo do ódio de minha família por você; enfim, encontrava-me num estado tão lamentável como o em que me encontro agora.

Se você tivesse dado provas de sua paixão depois que saiu de Portugal, eu teria feito todo o esforço para sair daqui; teria até me disfarçado para ir a seu encontro. Meu Deus! O que teria sido de mim se você não se importasse comigo depois que já estivesse na França!? Que horror! Que loucura! Que vergonha enorme para minha família, a quem tanto quero, depois que deixei de amar você!

Como você pode ver, reconheço friamente que eu podia ser ainda mais digna de piedade do que sou. Pelo menos uma vez na vida falo com você de forma ponderada. Como vai lhe agradar minha moderação, e como você ficará satisfeito comigo! Mas não quero saber! Já lhe pedi, e volto a suplicar, para não me escrever mais.

Você já pensou na maneira como vem me tratando? Nunca pensou que me deve mais obrigações do que a qualquer outra pessoa no mundo? Amei você como uma louca, desprezei todo o resto! Seu comportamento não é o de um homem honesto. Seria preciso que você tivesse por mim uma aversão natural para não ter me amado perdidamente. Deixei-me fascinas por qualidades muito medíocres. O que você fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou mil outros prazeres? Por acaso renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir em campanha? Não foi o último a voltar? Você se expôs loucamente, por mais que eu tenha lhe pedido que se poupasse por amor a mim. Nunca procurou meios de se estabelecer em Portugal, onde você era querido. Uma carta de seu irmão foi o suficiente para fazê-lo partir, sem qualquer hesitação. Pois eu vim a saber que, durante a viagem, seu humor era o melhor do mundo.

Confesso que sou obrigada a odiar você mortalmente. Fui eu própria que atraí para mim toda a minha infelicidade! Desde o início, e ingenuamente, acostumei você a uma grande paixão, quando é necessário algum artifício para se fazer amar. É preciso procurar com habilidade as formas de agradar: o amor por si só não desperta amor. Como você queria que eu o amasse, e como tinha planejado esse objetivo, fez tudo que pôde para consegui-lo. Teria até se decidido a me amar, se tivesse sido necessário. Mas percebeu que não era necessário amor para obter êxito em seu empreendimento, e que não precisava dele para nada. Que crueldade! Você pensa que pode me enganar assim impunemente? Se por acaso você voltar a este país, juro que o entregarei à vingança de minha família.

Vivi muito tempo num abandono e num adoração que me horrorizam, e meu remorso me persegue com uma dureza insuportável. Sinto uma enorme vergonha dos crimes que você me fez cometer; já não tenho, coitada de mim, a paixão que me impedia de perceber a extensão deles. Quando meu coração deixará de se sentir despedaçado? Quando é que me livrarei dessa vergonha cruel? Apesar de tudo, acho que não lhe desejo nenhum mal, e acabo admitindo que você seja feliz. Mas como você vai conseguir, se é que tem coração?

Quero ainda lhe escrever uma outra carta para lhe mostrar que, daqui a algum tempo, estarei mais tranqüila. Com que prazer haverei então de recriminar seu comportamento injusto, já que não estarei mais tão intensamente tocada por ele. Você vai perceber que o desprezo, que falo de sua traição, com a maior indiferença; que esqueci todo o meu prazer e sofrimento, e que só lembro de você quando quero me lembrar!

Concordo que você tenha muitas vantagens sobre mim, e que você me despertou uma paixão que me fez perder a razão; mas você não devia se envaidecer disso. Eu era jovem, ingênua; fecharam-me neste convento desde menina; só tive contato com gente desagradável; nunca tinha ouvido os elogios que você me dizia frequentemente; parecia que só a você eu devia o encanto e a beleza que você descobriu em mim, e a qual me fez perceber; eu só ouvia coisas boas ao seu respeito; todo mundo me falava a seu favor; e você fazia tudo para despertar o meu amor. Até que, por fim, livrei-me do encantamento. Você me ajudou muito, e confesso que eu tinha enorme necessidade dessa ajuda.

Devolvo-lhe suas cartas, exceto as duas últimas que me escreveu e que guardarei cuidadosamente. Quero relê-las mais vezes ainda do que li as primeiras, para evitar uma recaída. Mas como eles me custam, e como eu teria sido feliz se você tivesse deixado que eu o amasse para sempre! Reconheço que me ocupo muito ainda com o meu ressentimento e sua infelicidade, mas lembre-se de que prometi a mim mesma um estado razoável, que espero atingir, ou então tomarei contra mim uma decisão drástica, de que você saberá sem grande desgosto. Não quero mais nada de você. Sou uma louca, vivo dizendo a mesma coisa várias vezes. Preciso deixá-lo, e nunca mais pensar em você. Creio mesmo que não voltarei a lhe escrever. Que obrigação tenho eu de lhe explicar todos os meus sentimentos?”

Niterói, 13 de maio de 2011



Quarta Carta

por Mariana Alcoforado

“Acho que acabo causando um mal enorme aos meus sentimentos quando me esforço para explicá-los a você numa carta. Como eu ficaria feliz se você pudesse compreende-los pela intensidade dos seus! Mas não devo confiar em você, nem posso deixar de dizer – ainda que sem a violência com que sinto – que você não devia me maltratar desse jeito, com um desprezo que me leva ao desespero, e que chega a ser vergonhoso para você. É justo que você suporte pelo menos as queixas dessa infelicidade que previ quando você decidiu me deixar.

Sei muito bem que me enganei ao pensar que sua atitude era mais bem-intencionada do que de costume; afinal, meu amor extremado parecia colocar-me acima de quaisquer suspeitas, e merecer mais fidelidade do que é normal encontrar. Mas a sua disposição de me trair venceu em fim a justiça que você devia a tudo o que fiz por você. Minha infelicidade não acabaria se eu soubesse que você me ama somente porque eu amo você – eu que queria dever tudo unicamente ao seu desejo natural por mim. Mas essa possibilidade é tão remota que já estou há seis meses sem receber uma carta sua.

Atribuo toda essa infelicidade à cegueira com que me deixei unir a você. Não devia eu ter previsto que meu prazer terminaria mais depressa que meu amor? Como eu podia esperar que você ficasse em Portugal pelo resto de sua vida, que renunciasse a seu futuro e a seu país para pensar somente em mim? Não há alívio possível para meu sofrimento, e a lembrança daquele prazer me enche de desespero. Será que todo o meu desejo foi inútil, então, e que jamais verei você de novo em meu quarto, cheio de ardor e do êxtase que me mostrava? Meu Deus, como me iludi!

Sei que todas as emoções que ocupavam minha cabeça e meu coração só despertavam em você no momento de certos prazeres; e que, como eles, logo desapareciam. Durante aqueles momentos tão felizes, eu devia ter apelado à razão e moderado o fatal exagero da delícia do prazer, e me prevenido contra tudo o que hoje sofro. Mas eu me entregava tão inteiramente a você que não tinha condição de pensar em nada que fosse destruir minha alegria e me impedir de gozar plenamente o testemunho ardente da sua paixão. Sentir que eu estava com você era tão maravilhoso que eu não tinha como imaginar que um dia você estaria longe de mim.

Eu me lembro, porém, de ter dito algumas vezes que você me faria infeliz; mas esse medo logo dissipava, e eu tinha prazer em sacrificá-lo e me render à graças e à falsidade de seus protestos. Vejo qual é o remédio para todos os meus problemas, e logo ficaria livre deles se não amasse mais você. Mas que remédio nada! Prefiro sofre mais ainda do que esquecer você. Será que isso depende de mim? Não posso me repreender por querer, durante um único momento, deixar de amar você. Sua situação é mais lamentável do que a minha; é melhor sofrer tudo o que sofro do que gozar dos prazeres insípidos que suas amantes lhe proporcionam aí na França. Não invejo sua indiferença, e você me dá pena. Desafio você a me esquecer para sempre. Orgulho-me de tê-lo conduzido a um estado tal que somente comigo você experimente o prazer perfeito; e sou mais feliz do que você, porque tenho mais ocupações.

Há pouco tempo fui nomeada porteira desse convento. Todos os que falam comigo acham que sou louca. Não sei o que responder a eles. E acho que as freiras são tão insensatas quanto eu ao me julgarem capaz de algum encargo. Como invejo a sorte de Emanuel e Francisco (dois criados portugueses). Por que não estou sempre a seu lado como eles? Eu teria acompanhado você e servido você melhor que eles, com certeza. A coisa que mais desejo no mundo é ver você. Pelo menos você se lembra de mim? Essa simples lembrança já me contenta, embora não ouse ter certeza disso. Quando eu via você todos os dias, não limitava minhas esperanças à lembrança que você tinha de mim; mas você me ensinou a submeter a todos os seus desejos. Apesar disso, não me arrependo de ter adorado você, e acho maravilhoso que você tenha me seduzido.

Sua ausência cruel, e talvez definitiva, não diminui em nada o êxtase do meu amor. Quero que o mundo inteiro saiba dele, não faço segredo, e me sinto feliz por ter feito tudo o que fiz por você, ainda que contra todo tipo de decência. E já que cheguei a esse ponto, que minha honra e minha religião só me sirvam para amar você perdidamente por toda a minha vida. Não estou dizendo tudo isso para obrigar você a me escrever. Não se incomode. Nada quero de você que não que seja espontâneo, e recuso todas as provas de amor que sejam forçadas. Terei prazer em perdoá-lo se for confortável para você não me escrever. Sinto profunda disposição de perdoar todas as suas faltas para comigo.

Um oficial francês teve a caridade de me falar de você durante três horas essa manhã. Ele me disse que a França já está em paz. Se é assim, você não poderia vir me ver e me levar para a França? Mas eu não mereço. Faça o que você quiser. Meu amor não depende mais da maneira como você me trata. Depois que você partiu, eu não tive um único instante de saúde; e não experimentei qualquer outro prazer que o de chamar seu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que sabem do estado deplorável em que você me afundou, falam-me de você muitas vezes. Saio o mínimo possível desse quarto onde você veio tantas vezes, e passo o tempo todo olhando para o seu retrato, que me é mil vezes mais querido que minha própria vida. É um prazer olhar para ele, mas também me faz sofrer quando penso que talvez nunca mais eu veja você. Como é possível que eu nunca mais vá ver você? Será que você me abandonou para sempre? Estou desesperada. Sua pobre Mariana já não aguenta mais, vai desmaiar ao terminar essa carta. Adeus. Adeus, tenha pena de mim."

Niterói, 07 de junho de 2011



Terceira Carta

por Mariana Alcoforado

“O que vai ser de mim? O que você quer que eu faça? Estou tão longe de tudo o que imaginei. Esperava que você me escrevesse de todos os lugares por onde passasse, que suas cartas fossem bem longas, que você alimentasse meu amor com a esperança de que eu fosse rever você; que a inteira confiança na sua fidelidade me trouxesse algum conforto, e que, apesar de tudo, eu ficasse num estado razoavelmente suportável, sem tanto sofrimento.

Cheguei mesmo a traçar alguns planos inconsistentes de fazer todo o esforço de que sou capaz para me curar, se eu pudesse saber com certeza que você me esqueceu para sempre. Sua ausência, alguns impulsos de dedicação, o medo de arruinar de vez o que me resta de saúde – por tantas noites em claro e por tanta aflição –, a incerteza quanto ao seu retorno, a frieza de seus sentimentos e de sua despedida, sua partida fundada em falsos pretextos, em mil outras razões, que são tão boas quanto inúteis, pareciam prometer-me ajuda suficiente, se eu viesse a precisar. Não tendo, enfim, a quem combater senão a mim mesma, eu não podia jamais calcular toda essa minha fraqueza, nem imaginar tudo o que hoje sofro.

Ah, como é lamentável não partilhar com você meu sofrimento, e sentir sozinha tanta infelicidade! Esse pensamento me mata, e eu morro de medo de imaginar que você nunca tenha sentido com igual intensidade nosso amor. É, hoje eu sei da falsidade de seus intenções; você me enganou toda vez que me disse que se sentia maravilhado quando estava a sós comigo. Devo somente à minha insistência seus cuidados e seu êxtase. Propositalmente você traçou um plano para me enlouquecer; você nunca considerou minha paixão senão como uma vitória, e seu coração nunca foi profundamente tocado por ela. Será você tão perverso e indelicado a ponto de que tenha sido esse o único proveito que soube tirar de meus sentimentos? E como é possível que com tanto amor eu não tenha conseguido fazer você realmente feliz?

Lamento – só por amor a você – a felicidade infinita que você perdeu. Será possível que você não tenha desejado desfrutar dela? Se você imaginasse o que é essa felicidade, sem dúvida descobriria que é mais delicada do que a que você sentiu por me seduzir; e compreenderia que é bem melhor e mais emocionante amar violentamente do que ser amado.

Já não sei quem sou nem o que faço ou o que desejo. Estou despedaçada por mil sentimentos contraditórios. Pode-se imaginar um estado mais deplorável? Eu amo você tão perdidamente, e poupo tanto você a ponto de não ousar sequer desejar que você seja perturbado por uma obsessão igual a essa. Eu me mataria, ou morreria de desespero se soubesse que você nunca mais teria descaso, que sua vida é somente conflito e aflição, que você não pára de chorar, e que tudo lhe é repulsivo.

Se não consigo suportar meu próprio sofrimento, como poderei aguentar, a dor que o seu vai me causar, já que serei mil vezes mais sensível a ele? Mesmo assim como não consigo desejar que você pare de pensar em mim. E, falando sinceramente, tenho profundo ciúme de tudo o que, aí na França, lhe dá prazer e alegria, e emociona seu coração.

Não sei por que lhe escrevo. Percebo muito bem que você não tem senão pena de mim; eu absolutamente não que sua piedade. Tenho raiva de mim mesma quando penso em tudo aquilo que sacrifiquei por você. Perdi minha reputação, sujeitei-me ao ódio de meus parentes, à severidade das leis deste país contra às religiosas, e à sua ingratidão – que me parece o maior de todos os males. Por outro lado, sei que meus remorsos não são verdadeiros; que eu queria, do fundo do meu coração, ter corrido os maiores riscos por amor a você. Sinto na verdade um prazer mórbido por ter arriscado minha vida e minha honra por você. Não devia colocar à sua disposição todo o que tenho de mais precioso? E não devo estar satisfeito por ter feito o que fiz? O que não me satisfaz mesmo é meu sofrimento e a loucura desse amor; muito embora eu não possa me iludir de que estou satisfeita com você.

Contraditória que sou, vivo fazendo tanto para conservar minha vida quanto para perdê-la. Eu morro de vergonha. Meu desespero estará só nas minhas cartas? Afinal, se eu amasse você tanto quanto já disse mil vezes, já não estaria morta há muito tempo? Enganei você. Você é que devia queixar de mim. Por que não se queixa? Vi você partir, mas não tenho esperança de vê-lo voltar; mesmo assim, continuo a respirar. Traí você, e peço perdão por isso. Mas não me perdoe. Seja duro comigo. Você não acha que meus sentimentos são muito exagerados? Você promete me mandar dizer que quer que eu morra de amor por você? Imploro que me ajude a superar a fraqueza típica do meu sexo, que me impede de acabar com esse conflito num golpe de desespero. Um fim trágico obrigaria você, sem dúvida, a pensar mais em mim; eu seria uma lembrança querida para você, e quem sabe você não seria profundamente tocado por uma morte extraordinária. Isso não é melhor do que o estado a que você me reduziu?

Adeus. Eu queria jamais ter conhecido você. Mas não! Eu sinto a grande mentira que é esse meu desejo. E sei a grande mentira que é esse meu desejo. E sei, no momento em que lhe escrevo, que prefiro a infelicidade de amar você do que a idéia de nunca ter conhecido você. Aceito minha má sorte, portanto, sem reclamar, já que você não quis torná-la melhor. Adeus. Prometa que vai sentir saudade de mim se eu morrer de tristeza; e que pelo menos a loucura de minha paixão possa causar em você desgosto e indiferença por todas as coisas. Esse consolo me basta. E se for preciso abandonar você para sempre, prefiro não deixar você para nenhuma outra.

Será que você seria cruel o suficiente para usar meu desespero no intuito de se mostrar ainda mais atraente, gabando-se de ter provocado a maior paixão do mundo? Adeus mais uma vez. Escrevo cartas muitos longas, não tenho consideração por você. Peço que me perdoe. E ouso esperar que você tenha alguma indulgência por uma pobre insensata que – como você sabe – não era assim antes de amar você.

Adeus. Reconheço que falo demais do estado insuportável em que me encontro; mas agradeço a você, do fundo do meu coração, o desespero que você me causa; detesto a tranqüilidade em que eu vivia antes de conhecer você. Adeus. Meu amor aumenta a cada momento. Quanto coisa ainda tenho para dizer!”

Niterói, 03 de Junho de 2011

Já afirmei uma vez, numa passada postagem, que "sou o constante progresso e o persistente retrocesso.”. E não só eu, como muitos amigos meus vieram dizer-me que dentro deles existia também uma espécie de esquizofrenia: um dilema, um constante paradoxo, uma indecisão capazes de transformar a existência num verdadeiro inferno.

E eis também o que ocorre com meu querido Harry Haller. Como todos aqueles que não querem apenas viver, mas existir, nosso protagonista vive imerso nesse paradoxo. Além da dor que sua idade avançada lhe inflige, ele sofre com sua existência. E por ora, o deixo-o falar por si mesmo...

Fragmentos

“Quem havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque de gota, das dores malignas por detrás dos globos oculares, transformando a alegria de ver e de ouvir num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais, em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e da chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética, e quando tudo está concentrado e levado ao clímax do insuportável dentro de nosso próprio ser enfermo – quem já havia passado por aqueles dias infernais mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se sentava agradecido junto à estufa a ler os jornais, verificando satisfeito que não estalara nenhuma nova guerra, que não surgira nenhuma nova ditadura, que não se descobrira nenhum nauseante escândalo no mundo da política e das finanças, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranqüilo semideus, um tanto anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semi-homem um tanto encanecido que cantava o salmo incolor pareciam gêmeos.

Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar na ponta dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal a essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais era aquela sensação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado.”

(O Lobo da Estepe. Hermann Hesse, Ed. Bestbolso, RJ, 2010, p. 36- 7)


Uffa...

Niterói, 03 de junho de 2011

Hermann Hesse é, atualmente, o escritor alemão que mais admiro. Filho de pais protestantes que queriam que ele se tornasse um missionário, Hesse abandona tudo, muda de país e se torna um dos maiores escritores representantes da literatura alemã. Hesse é existencialista, além de ter sido profundamente influenciado por Nietzsche.

Seu livro “O lobo da estepe”, que leio no momento, é uma obra profundamente marcada pelo conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte; tal qual acontece em seu autor. Hermann também escreveu “Demian” um de meus livros favoritos e que já comentei em outras postagens. Estas agora servem para salientar os fragmentos mais interessantes – na minha visão – acerca da vida de Harry Haller, protagonista do livro, e alter ego de Hesse.

Lembrando que se trata de literatura alemã, ou seja, textos impregnados de sofrimento, desespero, conflito, questionamentos e outras coisas mais...


“O Lobo da Estepe”

por Hermann Hesse


“Convenci-me de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido das várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era o desprezo do mundo, mas antes o desprezo de si mesmo, pois, podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.

Devo acrescentar aqui uma observação psicológica: embora saiba muito pouco sobre a vida do Lobo da Estepe (Haller), tenho bons motivos para acreditar que foi educado por pais e professores bondosos, porém severos e muito devotos, desses que fundamentam toda a educação no ‘quebrantamento da vontade’. Tal destruição da personalidade e quebra do deseja não foram conseguidas com aquele aluno, de cuja prova saiu mais insensível e duro, orgulhoso e espiritual. Em vez de ter sua personalidade destruída, ele conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo. Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira toda a genialidade de sua fantasia, toda a força de seu poderoso pensamento. Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade, cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amá-los, para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o ‘Amarás ao teu próximo!’ estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.”

(O Lobo da Estepe. Hermann Hesse, Ed. Bestbolso, RJ, 2010, p. 19-20)

Niterói, 03 de junho de 2011

Continuo, pois, a postar as cartas de amor não correspondido da freira portuguesa Mariana Alcoforado, para o Conde de Chamilly. Devo dizer que esta é uma das maiores cartas... portanto, aquele que quiser ler deverá ter mais um pouco de paciência. Na verdade, não precisa de paciência, pois este se refere à coisas monótonas e desinteressantes, que é absolutamente o contrário do que está escrito aqui...


Segunda Carta

por Mariana Alcoforado

“O seu tenente acaba de me dizer que um temporal obrigou vocês a arribar no reino do Algarve. Você deve estar sofrendo muito no mar, e essa preocupação tem me ocupado a tal ponto que já não penso mais no meu próprio sofrimento. Percebeu que até mesmo seu tenente participa mais do que eu de tudo o que lhe acontece? Por que ele é mais informado que eu? E por que você não me escreveu?

É horrível pensar que você não tenha encontrado oportunidade para isso desde que partiu; pior ainda se encontrou e, mesmo assim, não escreveu. São demais essa ingratidão, essa injustiça. Mas eu entraria em desespero se por causa delas acontecesse algum mal a você. Prefiro não ser vingada a que você seja punido.

Resisto a todos os indícios que me queiram convencer de que você não me ama mais. Sinto mais vontade de me entregar cegamente à minha paixão do que às razões que tenho para reclamar do seu descaso. Eu teria sido poupada de muita agonia se sua atitude, logo nos primeiros dias em que o vi, tivesse sido tão desinteressada quanto me parece agora. Mas quem não se deixaria enganar, como eu, por tanta dedicação, e a quem não pareceria sincera? Como é doloroso ter que desconfiar, depois de tanto tempo, da honestidade daqueles que amamos.

Sei muito bem que você se serve de qualquer desculpa, por menos que seja. Mas mesmo que não tenha o cuidado de comunicá-la a mim, meu amor é tão fiel que eu só me permito julgar você culpado se for para gozar ainda mais do prazer de justificar você. Você que me consumiu com sua insistência, que me inflamou com sua excitação, me fascinou com sua delicadeza e me fez confiar em suas promessas. Minha violenta atração me seduziu. E o que se seguiu a essa começo tão delicado e feliz foram apenas lágrimas, suspiros, e uma morte dolorosa, irremediável.

É verdade que tive sentimentos surpreendentes amando você. Mas eles me custam dores estranhas; e todas as emoções que você me causa são extremas. Se eu tivesse resistido com obstinação a seu amor, se tivesse dado algum motivo de desgosto ou ciúme – para inflamar você ainda mais –, se você tivesse percebido alguma farsa reserva na minha conduta, se eu tivesse aceitado opor minha razão à atração natural que tenho por você (e a qual você logo me fez perceber), ainda que meus esforços fossem sem dúvida inúteis, você podia me punir severamente, e usar de seu poder.

Mas eu o achei atraente antes mesmo de você dizer que me amava. Declarou-me uma grande paixão, fiquei fascinada por ela e me entreguei perdidamente a amar você. Se você não estava cego como eu, por que então permitiu que eu chegasse ao estado em que me encontro? O que você esperava de um impulso que não lhe poderia ser senão muito incômodo? Você sabia muito bem que não ficaria muito tempo em Portugal... Então por que escolher a mim para deixar aqui tão infeliz? Com certeza você teria encontrado nesse país alguma mulher mais bonita, com quem pudesse gozar do mesmo prazer – afinal o que você procurava era mesmo essa vulgaridade; uma mulher que fosse sua amante fiel enquanto estivesse com você, a quem o tempo pudesse consolar dessa sua ausência; e a quem você poderia deixar sem traição nem crueldade.

Seu comportamento é mais próprio de um tirano interessado em perseguir do que de um amante que só deveria pensar em agradar. Por que pressionar tanto assim um coração que é seu? Sei muito bem que é tão fácil para você se deixar levar contra mim quanto eu me deixei levar a seu favor. Eu teria resistido a motivos bem mais fortes do que esses que obrigaram você a me deixar – sem que precisasse, para tanto, invocar meu amor por você; e sem achar que isso significaria estar fazendo algo de incomum. Todos os motivos iam parecer insuficientes, e nenhum deles jamais conseguiria me tirar de perto de você.

Mas você quis se aproveitar de todos os pretextos que encontrou para voltar à França. Um navio partia... por que não o deixou partir? Sua família tinha escrito... mas você não sabe de toda a perseguição que tenho sofrido por parte da minha? Sua honra obrigava-o a me abandonar... e por acaso eu cuidei da minha? Você era obrigado a servir seu Rei... mas se tudo o que dizem dele é verdade, ele absolutamente não estava precisando dos seus serviços, e teria dispensado você.
Como eu seria feliz se tivéssemos passado nossa vida juntos! Mas se foi inevitável que uma ausência cruel nos separasse, devo ao menos estar satisfeita por não ter sido infiel a você, e por não ter desejado, por nada nesse mundo, fazer uma coisa tão perversa.

Conhecendo-me tão profundamente, e a meu carinho mais íntimo, como você foi capaz de me deixar para sempre, e de me expor ao tormento de achar que só se lembra de mim quando é para me sacrificar a uma nova paixão? Sei que estou louca de amor por você; no entanto, absolutamente não me queixo de toda a violência dos impulsos de meu coração; acostumei-me com essa tortura, e já não poderia viver sem esse prazer que vou descobrindo: amar você entre tanta dor.

Mas eu tenho sido constantemente perseguida por uma enorme decepção, pelo ódio e pelo desgosto por todas as coisas. Minha família, meus amigos e este convento são insuportáveis. Odeio tudo o que sou obrigada a ver, e tudo o que faço por necessidade. Tenha essa espécie de ciúme de minha paixão por você, como se todas as minhas atitudes, e todas as minhas obrigações devessem dizer respeito a você. É, tenho escrúpulos de não dedicar todos os momentos da minha vida a você. O que seria de mim sem esse ódio e sem esse amor que afinal me enchem o coração?

Será que vou conseguir sobreviver a isto que me ocupa o tempo todo? Que vou conseguir levar uma vida tranqüila e despreocupada? Esse vazio e essa indiferença não me servem para nada. Todo mundo já percebeu minha completa mudança de humor, de comportamento, de personalidade. Minha mãe falou sobre isso comigo, primeiro com irritação, depois com certa tolerância. Nem sei o que lhe respondi, acho que confessei tudo. Até mesmo as freiras mais severas têm pena do estado em que me encontro, e que desperta nelas alguma consideração, e algum cuidado para comigo. Todo mundo se deixa comover pelo meu amor, enquanto você se mantém nessa profunda indiferença, me escrevendo cartas frias, repetitivas, com metade do papel em branco, atitude indelicada de quem parece estar morrendo de vontade de terminá-las.

Dana Brites insistiu, esses últimos dias, para que eu saísse do meu quarto. Acreditando me divertir, ela me levou para passear na varanda, de onde se avista Mértola. Aceitei acompanhá-la, mas logo fui ferida por uma lembrança cruel, que me fez chorar o resto do dia. Ela me levou de volta, e eu me atirei na cama, pensando em como tenho pouca esperança de me curar um dia. Tudo o que se faz para me confortar piora meu sofrimento, e acabo vendo os próprios remédios como motivos de mais aflição.

Muitas vezes vi você passar dali, com aquele seu jeito que me encantava; e foi naquela mesma varanda que eu estava no dia fatal em que comecei a sentir os primeiros sinais da minha paixão infeliz. Tive a impressão de que você queria me agradar, embora não me conhecesse. Convenci-me de que você tinha me notado entre todas as outras que estavam comigo. Achei que, quando você parava, era como se gostasse de saber que eu o observava e que admirava a graça e a destreza com que você conduzia o cavalo; e fiquei surpresa com o medo que tive quando você precisava fazê-lo atravessar uma passagem difícil. Enfim, eu estava secretamente interessada em todos os seus movimentos, senti que você não me era, de modo nenhum, indiferente, e tomei para mim tudo o que você fazia.

Você sabe muito bem o que aconteceu depois desse começo. Embora eu não tenha motivos para poupá-lo, não deve escrever sobre isso, para que você não se sinta ainda mais culpado, se é possível, do que já é; e para que não precise me censurar pelos esforços inúteis que o obrigasse a ser fiel a mim. Você nunca será. Como posso esperar de minhas cartas e queixas o que nem mesmo meu amor e minha total entrega conseguiram dessa sua ingratidão?

Não tenho dúvida de minha infelicidade; sua atitude injusta não me deixa motivo para duvidar, e devo esperar pelo pior mesmo, já que você me abandonou. Será que somente a mim você seduz? Ou será que outros olhos também acham você atraente? Creio que não ficarei de modo algum aborrecida se os sentimentos das outras justificarem os meus; gostaria que todas as mulheres da França achassem você atraente, mas que nenhum amasse ou satisfizesse você. Essa idéia é ridícula e impossível – mas já tive provas de que você não é capaz de grande dedicação, e certamente não vai precisar de nenhuma ajuda para me esquecer, nem mesmo de uma nova paixão para levá-lo a isso. Talvez eu até preferisse que você tivesse um pretexto razoável. Eu ficaria ainda mais infeliz, é verdade, mas pelo menos você não seria tão culpado.

Vejo que você ficará na França sem grandes prazeres, e com inteira liberdade. O cansaço de uma longa viagem, alguma conveniência e o medo de não corresponder a meu amor é que devem retê-lo aí. Mas não precisa ter medo por mim! A mim me basta ver você de tempos em tempos, e apenas saber que estamos então no mesmo lugar. Mas talvez eu esteja me iludindo; talvez você se deixe cativar muito mais pela frieza e pela austeridade de uma outra mulher do que por meu carinho. Será possível que a indelicadeza seduza você? Mas antes que você se envolva numa grande paixão, pense bem na dimensão do meu sofrimento, na incerteza de meus projetos, na contradição de meus sentimentos, na extravagância de minhas cartas, na minha confiança, no meu desespero, no meu desejo e no meu ciúme. Você vai se sentir tão infeliz! Imploro que você tire algum proveito do estado em que me encontro, e que pelo menos não seja em vão isso que sofro por você.

Há cinco ou seis meses você me fez uma delicada confidência: disse, com toda a sinceridade, que tinha amado uma mulher no seu país. Se é ela que impede você de voltar, mande dizer, sem escrúpulos, para que eu pare de me mortificar aqui. Algum resto de esperança ainda me anima; mas, se não puder alimentá-la, prefiro perdê-la de vez, e me perder a mim mesma. Mande-me um retrato e algumas cartas dela, e me conte tudo o que ela diz a você. Quem sabe não vou encontrar nisso razões para me consolar, ou para me afligir ainda mais.

Não posso ficar por muito mais tempo no estado em que me encontro; qualquer mudança me fará bem. Gostaria também de ter o retrato de seu irmão e de sua cunhada. Tudo o que, de qualquer forma, se relaciona a você me sensibiliza. Serei inteiramente dedicada a tudo o que diz respeito a você. Não me resta nenhuma disposição quanto a mim mesmo. Há momentos em que acho que eu seria capaz de tal submissão a ponto de concordar em servir à mulher que ame você. O desprezo e a dureza com que você me trata me humilham de tal modo que eu sequer ouso pensar em sentir ciúmes, com medo de desagradar você; e sinto mesmo toda a culpa do mundo por acusá-lo. Muitas vezes também tenho a convicção de que não devia manifestar de modo tão arrebatado um sentimento que você desaprova.

Faz tempo que um oficial está esperando por essa carta lá fora. Tentei escrever de forma a não aborrecer você, mas a carta ficou tão extravagante que é melhor terminá-la. Mas como é difícil conseguir! Quando lhe escrevo, parece que estou falando com você, e que você está um pouco mais presente. A próxima carta não será nem tão longa nem tão intempestiva – você vai poder abrir a ler com essa certeza que lhe dou agora. Na verdade, não devo falar de uma paixão que incomoda você, e não falarei mais.

Dentro de poucos dias, vai fazer um ano que me entreguei a você sem reservas. Sua paixão me pareceu tão ardente e tão sincera que jamais pensei que minha demonstração de amor fosse incomodar você a ponto de obrigá-lo a percorrer quinhentas léguas, expondo-se a naufrágios, para se afastar de mim. Ninguém nunca me tratou assim. Você devia se lembrar do meu pudor, de minha confusão e de meu desatino; mas você não se lembra de nada que o tenha levado a me amar contra sua vontade.

O oficial que vai levar essa carta avisou-me pela quarta vez que precisa partir. Como ele tem pressa! Com certeza deve estar abandonando alguma infeliz aqui neste país. Adeus. Sofro mais por terminar essa carta do que você sofreu para me deixar, talvez para sempre. Adeus. Não ouso chamar você de mil nomes carinhosos, nem a me entregar completamente a tudo o que estou sentindo. Amo você mil vezes mais que a minha própria vida, e mil vezes mais do que posso imaginar. Como eu desejo você! Mas como você é cruel comigo! Você nunca me escreve; não posso deixar de dizer isso ainda. Estou recomeçando, e o oficial vai partir. Que parta. Não importa. Escrevo mais para mim do que para você; procuro apenas me aliviar.

O comprimento dessa carta vai assustá-lo; você não vai ler. O que fiz para ser tão infeliz? Por que você envenenou minha vida? Por que não nasci em outro país? Adeus. Me desculpe. Já não me atrevo a pedir que você me ame. Está vendo a que meu destino me reduziu? Adeus.”

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