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De Orfeu

Niterói, 16 de abril de 2013

Para Willian Lizardo


Alma, prende-me dentro de ti.

Cada dia que se ergue, e lá se vão muitos, é seguido pelo estreitar de suas correntes em volta de meu coração. Chega a arrancar-me lágrimas e sangue: dói, alma; dói estar perto de você, dói estar longe. Sangro. Olho para meus pulsos, choro. Lágrimas de alegria pelo cativeiro. Saibas que meu cadafalso é tua existência, e sinto que a qualquer momento pode arrancar-me a cabeça. Se acontecer, serei um corpo inerte. Até lá, não hei de fugir, querido algoz. As paredes de minha prisão são mais desejáveis que os quartos palacianos dos monarcas que sempre passeiam por nossa prosa. 

Estamos envenenados, meu outro eu. Fomos feridos pelo frio branco da imensa lua, a única de nossas vidas, que acima de nossas cabeças lançava feitiços peçonhentos. Se tentarem nos salvar, o antídoto há de matar a ambos. Eu, porque estou em você, você, porque está em mim. Uma paráfrase montaigniana, tu que dizes que nós filósofos gostamos de apontar os dedos. 

Quem diria...

Se um dia nos avisassem que o amor desvairado e o desprezo que à ele fazia frente cederiam lugar à uma amizade para além da amizade, certamente zombaríamos de tal espalhafatão. Não compreendem, porque não é algo que se aconteça com frequência. O mundo precisa de milhares de anos para fazer surgir algo como isto. Montaigne, novamente... um beijo no coração, querido!

Escrevo cartas para alguém cujas palavras são desnecessárias. Linhas e mais linhas para alguém cujos versos sempre são mais profundos que os meus. És mestre poeta e músico, eu, retórico e sóbrio. Pago meus tributos à você, aedo e rapsodo. 

Um único erro, porém, cometeste ao escrever-me: ser por demasiado belo. Ourives das lestras, humilha-me a cada vírgula. Encurvo meus ombros a cada ponto. Temo largar a pena a cada parágrafo. "O que escrever depois de Proust?", lamentava Virgínia. Eu sou Virgínia. Tua beleza é teu calcanhar de Aquiles: bem saber que Virgem não deve brilhar mais que o Leão. Mas, que hei de fazer? Renunciei ao orgulho, preferi tua companhia. Não há o que fazer. Tua constelação te eleva e te aproxima dos deuses eternos, enquanto à mim, reserva-me as savanas áridas e poeirentas. Sempre te olharei de baixo, maldito. 

Temo por já estar sendo prolixo. Se escrevo, não escrevo para você, mas para que os outros saibam de você. Entre nós, l e n t a m e n t e  as palavras vão se a b o l i n... Permanecem os olhares certeiros, profundos, concordantes, e zombeteiros.

Escrevo um tributo, alma. Antes mesmo de morrerdes. Ofereço minhas libações, sacrificando no altar do amor para além-das-categorias os sentimentos que não consigo dizer, e que ainda não entendemos. E que assim vejam não a mim, mas à você, tu que és Orfeu, emissário das Musas, deusa dos poetas e dos heróis.

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