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Da conversa com Vento

Niterói, 02 de junho de 2013

Era final de tarde. Uma hora, apenas uma, separava-me do Ocaso de rosáceos dedos. O céu ainda encontrava-se claro e nublado. As nuvens forravam as alturas com um cinza melancólico. Meu humor harmonizava-se com a morada dos deuses.

Sentei-me. Meus pés balançavam, pendurados no ar. O verde da grama em que estava sentado contrastava com a cor escura das pedras do penhasco, meu trono particular. Era um penhasco escarpado: mais alguns centímetros a frente e o abismo acolheria-me me seus braços rochosos. Abaixo, muito mais abaixo, talvez centenas de metros abaixo, as pedras úmidas pela água salgada. Ondas iam e vinham, chocando-se contra a parede de meu templo solitário. As gostas que respingavam fariam bem ao meu rosto, já tão marcado, mas, era triste ver que estavam tão distantes. Nada havia que se mexesse, a não ser o misterioso mar.

 Não sei por quanto tempo fiquei lá, sentado, convidado pelo abismo a pular. Dava-me vertigem o desejo de me jogar. Como Odisseu, eu ouvi o canto das sereias, mas não me rendi. Até que ouvi outra voz. Olhei para os lados, e ninguém por perto estava. Mais alguns segundos e a voz novamente chegou até a mim. “Quem é você?” foi minha resposta. “Sou aquilo de quem falam, mas que nunca veem. Sou invisível como os deuses, e por vezes os sirvo. Destruo mas também afago. Sou indomável companheiro dos homens. Sou Vento.”

“O que estás a fazer?”

“Não olhes diretamente para mim, pois me ver não podes. Torce teu pescoço, inclina tua cabeça, atina teus ouvidos. Quando eu passar, ouvirás o eco de meu corpo, e tu terás a resposta.”

“O que estás a fazer?”

“O mesmo que tu, pequeno. Apenas existindo. O que fazes sentado em penhasco tão alto? Um empurrão meu e podes permanecer para sempre aqui, fundido às rochas e ao mar.”

“Não sei responder. Acho que estava com saudade. Saudades da altura, da vertigem, do céu cinza, da grama molhada, da solidão, e do perigo de assentar-me aqui, tão próximo da morte. As festas e bailes me cansaram, os corpos já não me fazem companhia, parte de minha alma está longe, livro algum para sobre minhas mãos. Saudades de mim... acho que é isso...”

“Não cansas de ficar sozinho?”

“Diga-me tu, que está em todos os lugares, e não está em nenhum, que abraça a todos, mas a ti ninguém abraça.”

“Depois de muito tempo, há que acostumar-se. Vocês, nos poucos anos que tem, talvez não consigam isso. Fomos feitos assim. Muitos por mim já passaram, mas comigo ninguém pode ficar. No início, revoltava-me com mais frequência: árvores, montanhas, rios e os primeiros homens sofreram com a turbulência de meu coração solitário. Em minha angustia, matei muitos. Se comigo eles não podiam ficar, tampouco existiriam. Cansado do sangue que escorria pela terra, fui ter com três deusas. Elas, de semblante sombrio por conhecerem o destino de todos, à mim ensinaram o que é existir. Não digo que aprendi com facilidade: muitos outros morreram pela minha dor.  Mas, como te disse, os incontáveis anos me acalmaram de certa forma. As deusas me falaram como haveria de ser, e não havia como mudar. Tive que me enquadrar. Elas são as senhoras.”

“Se aprendeu, diga-me, qual é o segredo da vida? Como posso aprender?”

“Nunca aprenderá” foi o que me disse Vento. Porém, antes que me entristecesse por completo, suas palavras aladas chegaram aos meus ouvidos: “Poucos anos te concederão as deusas. Com tão ínfimo tempo, não hás de aprender como existir. Milênios haveria de passar antes que as palavras começassem a fazer sentido, e mais outros milênios para tentar por em prática. Nunca haverás de apreender a vida. Ela passará por você assim como por ti eu passo. Saiba, entretanto, que por isso você está desobrigado a ser quem você deveria ser. Podes se reinventar quando quiser. Seus poucos anos te dão esta licença. És livre porque é mortal. Estás condenado a ter sua liberdade nas próprias mãos: pode se atirar de onde estás, podes levantar e ir para as campinas, ou podes permanecer onde estás. Que deus se oporá a sua vontade? Por não saberes o sentido da vida, a ignorância é teu álibi. É certo que as deusas um dia hão de cortar o fio que te prende a este oceano de existência, mas a ti nunca poderão fazer mal, nem te recompensar punitivamente por teus atos. És dono de tua vida por viver tão pouco. À mim a responsabilidade persegue, à ti, apenas a liberdade. Consegues ser livre para amar, por não conseguir adivinhar que o amor um dia chega ao fim. Como saberia? Morrerás prematuramente antes de sequer tocar tal pensamento com tua mente. És livre para sentir saudades, pois não está em sua alçada saber quando haverás de reencontrar o alvo de tua saudade. Não reclames por não saber de todas as coisas, nem se revolte por ser tão efêmero: sua liberdade é dom da ignorância e da morte. Se queres permanecer aqui, permaneças. És livre para estar sozinho, mesmo que te doa. Disso também não reclames, pois, por pouco tempo estarás sozinho, diferente de mim, condenado a viver sem a ninguém abraçar.”

Com estas palavras foi-se Vento. O sol já havia se posto e as primeira estrelas começavam a brilhar no céu. Eu permaneci mais um pouco. Com saudades das palavras dele. Mais próximo de mim. 

De Orfeu

Niterói, 16 de abril de 2013

Para Willian Lizardo


Alma, prende-me dentro de ti.

Cada dia que se ergue, e lá se vão muitos, é seguido pelo estreitar de suas correntes em volta de meu coração. Chega a arrancar-me lágrimas e sangue: dói, alma; dói estar perto de você, dói estar longe. Sangro. Olho para meus pulsos, choro. Lágrimas de alegria pelo cativeiro. Saibas que meu cadafalso é tua existência, e sinto que a qualquer momento pode arrancar-me a cabeça. Se acontecer, serei um corpo inerte. Até lá, não hei de fugir, querido algoz. As paredes de minha prisão são mais desejáveis que os quartos palacianos dos monarcas que sempre passeiam por nossa prosa. 

Estamos envenenados, meu outro eu. Fomos feridos pelo frio branco da imensa lua, a única de nossas vidas, que acima de nossas cabeças lançava feitiços peçonhentos. Se tentarem nos salvar, o antídoto há de matar a ambos. Eu, porque estou em você, você, porque está em mim. Uma paráfrase montaigniana, tu que dizes que nós filósofos gostamos de apontar os dedos. 

Quem diria...

Se um dia nos avisassem que o amor desvairado e o desprezo que à ele fazia frente cederiam lugar à uma amizade para além da amizade, certamente zombaríamos de tal espalhafatão. Não compreendem, porque não é algo que se aconteça com frequência. O mundo precisa de milhares de anos para fazer surgir algo como isto. Montaigne, novamente... um beijo no coração, querido!

Escrevo cartas para alguém cujas palavras são desnecessárias. Linhas e mais linhas para alguém cujos versos sempre são mais profundos que os meus. És mestre poeta e músico, eu, retórico e sóbrio. Pago meus tributos à você, aedo e rapsodo. 

Um único erro, porém, cometeste ao escrever-me: ser por demasiado belo. Ourives das lestras, humilha-me a cada vírgula. Encurvo meus ombros a cada ponto. Temo largar a pena a cada parágrafo. "O que escrever depois de Proust?", lamentava Virgínia. Eu sou Virgínia. Tua beleza é teu calcanhar de Aquiles: bem saber que Virgem não deve brilhar mais que o Leão. Mas, que hei de fazer? Renunciei ao orgulho, preferi tua companhia. Não há o que fazer. Tua constelação te eleva e te aproxima dos deuses eternos, enquanto à mim, reserva-me as savanas áridas e poeirentas. Sempre te olharei de baixo, maldito. 

Temo por já estar sendo prolixo. Se escrevo, não escrevo para você, mas para que os outros saibam de você. Entre nós, l e n t a m e n t e  as palavras vão se a b o l i n... Permanecem os olhares certeiros, profundos, concordantes, e zombeteiros.

Escrevo um tributo, alma. Antes mesmo de morrerdes. Ofereço minhas libações, sacrificando no altar do amor para além-das-categorias os sentimentos que não consigo dizer, e que ainda não entendemos. E que assim vejam não a mim, mas à você, tu que és Orfeu, emissário das Musas, deusa dos poetas e dos heróis.

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