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De Barbazul e da solidão


Niterói, 26 de setembro de 2012




Contaram-me certa vez que um rei havia muito queria casar. Barbazul, o rei, morava em seu castelo de muitos cômodos e de muitas torres. Por ser rei, não lhe faltava pretendentes. Todas desejavam ser rainha, porém, uma só conseguiria o posto. Era preciso, então, escolher a que dentre elas seria sua esposa.

Uma das torres foi projetava exatamente para esse propósito. Oito ou sete patamares foram construídos. Em cada um o rei apresentava às pretendentes o seu mundo particular. Patamar da família, patamar dos amigos, patamar das festas, patamar das obrigações reais, patamar de tudo o que era tipo. Tudo quanto fazia parte da vida de Barbazul estava contido por detrás daquelas portas. E lá adentravam as pretendentes. Eis, então, que chegavam ao último patamar. O soberano entregava-lhes a chave e se retirava.

Era um quarto escuro. Havia apenas dois bancos. Um para a pretendente. O noutro vinha sentar-se um violoncelista. Se não me falha memória, o músico sentava e passava a tocar uma obra de Bach para violoncelo. Ao final da música, ele se levantava e ia embora. A pretendente saia e encontrava-se com o rei que lhe perguntava o que a moça havia sentido. Elas respondiam quão bela era a música, ou quão perfeita foi a interpretação. Não comovido, Barbazul as dispensava, e, continuava em sua busca por uma esposa.

Houve, certa vez, uma moça que se candidatou ao posto de rainha. Ela, também se não me engano, era de família humilde. Percorreu todos os patamares. Chegou, por fim, ao último. Sentou-se no devido lugar. O violoncelista pôs-se a tocar. Enquanto ouvia os caminhos que a música percorria, a moça sentiu uma profunda solidão. Aquela solidão a comoveu e seus olhos não tardaram a derramar lágrimas. O que passava pela sua mente e seu coração eu desconheço, mas seu choro foi intenso e sincero. Ficou lá... chorando por algo que lhe tocou a alma. A música terminou, o músico foi embora. Ela permaneceu em silêncio, sentada durante um tempo. Ao sair, encontrou Barbazul. Este perguntou-lhe o que havia se passado lá dentro. Ela só soube relatar a intensidade de suas lágrimas.

Comovido, o rei entregou-lhe a chave do patamar e pediu-a em casamento. Explicou-lhe que aquele quarto era o profundo de sua alma. Lá estava sua solidão. A pessoa que se sentisse próxima a essa solidão seria a pessoa que estaria próxima dele. Nessa hora, Barbazul entregou o coração à moça, dizendo-lhe: “Amo-a por ter amado minha solidão... Nossas solidões são companheiras”.

Barbazul, a moça, a solidão. Para mim, esse é o verdadeiro amor: a companhia mútua de duas almas solitárias. Amigos, família, festas, obrigações... tudo faz parte da vida. Mas é ela, a solidão, aquilo que, quando compartilhada, torna duas pessoas um único ser. Dois corações distintos, uma única solidão.

Quem sabe o que é compartilhar a solidão de uma alma, sabe o que é compartilhar o amor. Amar talvez seja essa busca e o encontrar de um coração que se comoveu com aquilo que a primeiro momento não passava de um violoncelo, de um músico, de uma música. Amar talvez seja tocar o fundo de uma alma que se contorce na solidão da vida. Amar talvez não seja nada mais do que o comover. Mover junto, dançar no mesmo ritmo. Chorar com a canção.

Talvez por isso se ame tão pouco, ou talvez seja por isso que não se ame nunca. Barbazul e a moça são apenas uma estória. No mundo da vida que acontece debaixo dos nossos pés talvez isso seja impossível. Cada um aparece e logo se vai. A música foi bela, o músico era excelente, o violoncelo de uma afinação exemplar. Tudo era agradável. Mas... comoção? Não para tanto. Chorar no escuro? Infantilidade. Solidão? Só para quem é depressivo. “Pode ir... você não compreendeu o que era meu último patamar!”

Assim os dias se passam. Pessoas vêm, pessoas vão. Eternamente o violoncelista continua a tocar a canção. São muitos rostos, muitas faces atentas à execução da música. A cadeira, entretanto, continua vazia. Não há quem se sente e fique a contemplar a escuridão, a comover-se com a canção, a chorar no escuro.

Barbazul poderia ter chegado a pensar que tudo não se passa de ilusão. Que sua solidão era por demais profunda para que uma moça um dia a compreendesse. Ou, talvez, que ele mesmo era um miserável, um romântico em anacrônica decadência. Talvez ele realmente seja tudo isso que chegou a pensar. E eu creio que ele realmente seja. Mas... ei-lo a tocar a canção...

Na estória, o rei encontrou quem o compreendesse. Eu cá seria muito feliz se alma sensível por tal poesia fosse tocada.

Não me esqueço, porém, que ainda sou jovem e o verde de minha curta vida ainda não embotou. A primavera ainda está em flor... Que me dirá os invernos de meu futuro? 

Niterói, 19 de setembro de 2012



Restava-nos 20 minutos...

Disse-lhe que acenderia um cigarro e sairia para a varanda observar o espetáculo antes de morrer. Não poderia me esconder simplesmente. Se estava prestes a acontecer, não perderia por nada.

Desligamos os celulares. As últimas palavras de meu amigo foram: “Ah, liguei só para me despedir, caso algo aconteça”. As minhas foram: “Se acontecer, amigo, saiba que o amo”. Era recíproco o sentimento.

Não julguem por simples o acontecimento. Era um evento cósmico. Uma mistura de asteroide com colisão da lua com a Terra. Não tente entender, pois não é científico, nem tampouco lógico. Mas era urgente, era imperioso, era falso. Só o que existia era a imaginação. E, por fazer parte de mim, durante alguns minutos o mundo realmente acabou.

Lembrei-me de Montaigne. A morte naqueles instantes já não era algo terrível. Porém, não era também desejável. Era apenas algo a se esperar tranquilamente, sem medo, ao som de uma música que toca a alma, ao sabor da fumaça de um cigarro. A natureza quis assim: quis que a máscara mortuária fosse mais bela do que as quimeras de nossa imaginação decadente. A natureza se encarregou de meu medo. Já não havia nada a ser feito, a não ser esperar, apreciando os choques cósmicos.

Devo dizer que havia em meus olhos uma lágrima nascente. Estava prestes a chorar. Uma lágrima de nostalgia... Estava me despedindo. De tudo que me ocorreu, que me trouxe riso ou lágrimas, tudo haveria simplesmente deixar de existir. Eu deixaria de existir. Era a hora.

Coisas importantes subitamente tomam conta de nós quando vemos na distância Caronte em seu barco. Desesperados damos valor ao que antes era trivial. O mundo de pernas pro ar. Não por muito tempo. A barca se aproxima. E é bom que ela venha. É bela. Quem foi que inventou a estapafúrdia de que é feio o rosto de Thanatos?

Meu amigo escreveu: “Adeus dia em que achei que não acordaria, que deprimente fostes, e quão feliz serias...” Amigo, estávamos realmente felizes. Finalmente vivíamos, mesmo que em melancolia. Não diria, querido amigo, que deprimente foi aqueles minutos... antes, nostálgicos. Sentíamos já saudades daquilo que em breve perderíamos. Aí, então, a beleza que dizes: ao perder a vida, a encontramos. Triste é vivermos e, por isso, permanecermos mortos...

À Willian Lizardo, companhia por demais elevada, amizade por demais sincera...

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