Contaram-me certa vez
que um rei havia muito queria casar. Barbazul, o rei, morava em seu castelo de
muitos cômodos e de muitas torres. Por ser rei, não lhe faltava pretendentes.
Todas desejavam ser rainha, porém, uma só conseguiria o posto. Era preciso,
então, escolher a que dentre elas seria sua esposa.
Uma das torres foi
projetava exatamente para esse propósito. Oito ou sete patamares foram
construídos. Em cada um o rei apresentava às pretendentes o seu mundo
particular. Patamar da família, patamar dos amigos, patamar das festas, patamar
das obrigações reais, patamar de tudo o que era tipo. Tudo quanto fazia parte
da vida de Barbazul estava contido por detrás daquelas portas. E lá adentravam
as pretendentes. Eis, então, que chegavam ao último patamar. O soberano entregava-lhes
a chave e se retirava.
Era um quarto escuro.
Havia apenas dois bancos. Um para a pretendente. O noutro vinha sentar-se um
violoncelista. Se não me falha memória, o músico sentava e passava a tocar uma
obra de Bach para violoncelo. Ao final da música, ele se levantava e ia embora.
A pretendente saia e encontrava-se com o rei que lhe perguntava o que a moça
havia sentido. Elas respondiam quão bela era a música, ou quão perfeita foi a
interpretação. Não comovido, Barbazul as dispensava, e, continuava em sua busca
por uma esposa.
Houve, certa vez, uma
moça que se candidatou ao posto de rainha. Ela, também se não me engano, era de
família humilde. Percorreu todos os patamares. Chegou, por fim, ao último.
Sentou-se no devido lugar. O violoncelista pôs-se a tocar. Enquanto ouvia os
caminhos que a música percorria, a moça sentiu uma profunda solidão. Aquela
solidão a comoveu e seus olhos não tardaram a derramar lágrimas. O que passava
pela sua mente e seu coração eu desconheço, mas seu choro foi intenso e
sincero. Ficou lá... chorando por algo que lhe tocou a alma. A música terminou,
o músico foi embora. Ela permaneceu em silêncio, sentada durante um tempo. Ao
sair, encontrou Barbazul. Este perguntou-lhe o que havia se passado lá dentro.
Ela só soube relatar a intensidade de suas lágrimas.
Comovido, o rei
entregou-lhe a chave do patamar e pediu-a em casamento. Explicou-lhe que aquele
quarto era o profundo de sua alma. Lá estava sua solidão. A pessoa que se sentisse
próxima a essa solidão seria a pessoa que estaria próxima dele. Nessa hora,
Barbazul entregou o coração à moça, dizendo-lhe: “Amo-a por ter amado minha
solidão... Nossas solidões são companheiras”.
Barbazul, a moça, a
solidão. Para mim, esse é o verdadeiro amor: a companhia mútua de duas almas
solitárias. Amigos, família, festas, obrigações... tudo faz parte da vida. Mas
é ela, a solidão, aquilo que, quando compartilhada, torna duas pessoas um único
ser. Dois corações distintos, uma única solidão.
Quem sabe o que é
compartilhar a solidão de uma alma, sabe o que é compartilhar o amor. Amar
talvez seja essa busca e o encontrar de um coração que se comoveu com aquilo
que a primeiro momento não passava de um violoncelo, de um músico, de uma
música. Amar talvez seja tocar o fundo de uma alma que se contorce na solidão
da vida. Amar talvez não seja nada mais do que o comover. Mover junto, dançar no
mesmo ritmo. Chorar com a canção.
Talvez por isso se ame
tão pouco, ou talvez seja por isso que não se ame nunca. Barbazul e a moça são
apenas uma estória. No mundo da vida que acontece debaixo dos nossos pés talvez
isso seja impossível. Cada um aparece e logo se vai. A música foi bela, o
músico era excelente, o violoncelo de uma afinação exemplar. Tudo era
agradável. Mas... comoção? Não para tanto. Chorar no escuro? Infantilidade.
Solidão? Só para quem é depressivo. “Pode ir... você não compreendeu o que era
meu último patamar!”
Assim os dias se
passam. Pessoas vêm, pessoas vão. Eternamente o violoncelista continua a tocar
a canção. São muitos rostos, muitas faces atentas à execução da música. A
cadeira, entretanto, continua vazia. Não há quem se sente e fique a contemplar
a escuridão, a comover-se com a canção, a chorar no escuro.
Barbazul poderia ter
chegado a pensar que tudo não se passa de ilusão. Que sua solidão era por
demais profunda para que uma moça um dia a compreendesse. Ou, talvez, que ele
mesmo era um miserável, um romântico em anacrônica decadência. Talvez ele
realmente seja tudo isso que chegou a pensar. E eu creio que ele realmente
seja. Mas... ei-lo a tocar a canção...
Na estória, o rei
encontrou quem o compreendesse. Eu cá seria muito feliz se alma sensível por tal
poesia fosse tocada.
Não me esqueço, porém,
que ainda sou jovem e o verde de minha curta vida ainda não embotou. A
primavera ainda está em flor... Que me dirá os invernos de meu futuro?