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Da conversa com Vento

Niterói, 02 de junho de 2013

Era final de tarde. Uma hora, apenas uma, separava-me do Ocaso de rosáceos dedos. O céu ainda encontrava-se claro e nublado. As nuvens forravam as alturas com um cinza melancólico. Meu humor harmonizava-se com a morada dos deuses.

Sentei-me. Meus pés balançavam, pendurados no ar. O verde da grama em que estava sentado contrastava com a cor escura das pedras do penhasco, meu trono particular. Era um penhasco escarpado: mais alguns centímetros a frente e o abismo acolheria-me me seus braços rochosos. Abaixo, muito mais abaixo, talvez centenas de metros abaixo, as pedras úmidas pela água salgada. Ondas iam e vinham, chocando-se contra a parede de meu templo solitário. As gostas que respingavam fariam bem ao meu rosto, já tão marcado, mas, era triste ver que estavam tão distantes. Nada havia que se mexesse, a não ser o misterioso mar.

 Não sei por quanto tempo fiquei lá, sentado, convidado pelo abismo a pular. Dava-me vertigem o desejo de me jogar. Como Odisseu, eu ouvi o canto das sereias, mas não me rendi. Até que ouvi outra voz. Olhei para os lados, e ninguém por perto estava. Mais alguns segundos e a voz novamente chegou até a mim. “Quem é você?” foi minha resposta. “Sou aquilo de quem falam, mas que nunca veem. Sou invisível como os deuses, e por vezes os sirvo. Destruo mas também afago. Sou indomável companheiro dos homens. Sou Vento.”

“O que estás a fazer?”

“Não olhes diretamente para mim, pois me ver não podes. Torce teu pescoço, inclina tua cabeça, atina teus ouvidos. Quando eu passar, ouvirás o eco de meu corpo, e tu terás a resposta.”

“O que estás a fazer?”

“O mesmo que tu, pequeno. Apenas existindo. O que fazes sentado em penhasco tão alto? Um empurrão meu e podes permanecer para sempre aqui, fundido às rochas e ao mar.”

“Não sei responder. Acho que estava com saudade. Saudades da altura, da vertigem, do céu cinza, da grama molhada, da solidão, e do perigo de assentar-me aqui, tão próximo da morte. As festas e bailes me cansaram, os corpos já não me fazem companhia, parte de minha alma está longe, livro algum para sobre minhas mãos. Saudades de mim... acho que é isso...”

“Não cansas de ficar sozinho?”

“Diga-me tu, que está em todos os lugares, e não está em nenhum, que abraça a todos, mas a ti ninguém abraça.”

“Depois de muito tempo, há que acostumar-se. Vocês, nos poucos anos que tem, talvez não consigam isso. Fomos feitos assim. Muitos por mim já passaram, mas comigo ninguém pode ficar. No início, revoltava-me com mais frequência: árvores, montanhas, rios e os primeiros homens sofreram com a turbulência de meu coração solitário. Em minha angustia, matei muitos. Se comigo eles não podiam ficar, tampouco existiriam. Cansado do sangue que escorria pela terra, fui ter com três deusas. Elas, de semblante sombrio por conhecerem o destino de todos, à mim ensinaram o que é existir. Não digo que aprendi com facilidade: muitos outros morreram pela minha dor.  Mas, como te disse, os incontáveis anos me acalmaram de certa forma. As deusas me falaram como haveria de ser, e não havia como mudar. Tive que me enquadrar. Elas são as senhoras.”

“Se aprendeu, diga-me, qual é o segredo da vida? Como posso aprender?”

“Nunca aprenderá” foi o que me disse Vento. Porém, antes que me entristecesse por completo, suas palavras aladas chegaram aos meus ouvidos: “Poucos anos te concederão as deusas. Com tão ínfimo tempo, não hás de aprender como existir. Milênios haveria de passar antes que as palavras começassem a fazer sentido, e mais outros milênios para tentar por em prática. Nunca haverás de apreender a vida. Ela passará por você assim como por ti eu passo. Saiba, entretanto, que por isso você está desobrigado a ser quem você deveria ser. Podes se reinventar quando quiser. Seus poucos anos te dão esta licença. És livre porque é mortal. Estás condenado a ter sua liberdade nas próprias mãos: pode se atirar de onde estás, podes levantar e ir para as campinas, ou podes permanecer onde estás. Que deus se oporá a sua vontade? Por não saberes o sentido da vida, a ignorância é teu álibi. É certo que as deusas um dia hão de cortar o fio que te prende a este oceano de existência, mas a ti nunca poderão fazer mal, nem te recompensar punitivamente por teus atos. És dono de tua vida por viver tão pouco. À mim a responsabilidade persegue, à ti, apenas a liberdade. Consegues ser livre para amar, por não conseguir adivinhar que o amor um dia chega ao fim. Como saberia? Morrerás prematuramente antes de sequer tocar tal pensamento com tua mente. És livre para sentir saudades, pois não está em sua alçada saber quando haverás de reencontrar o alvo de tua saudade. Não reclames por não saber de todas as coisas, nem se revolte por ser tão efêmero: sua liberdade é dom da ignorância e da morte. Se queres permanecer aqui, permaneças. És livre para estar sozinho, mesmo que te doa. Disso também não reclames, pois, por pouco tempo estarás sozinho, diferente de mim, condenado a viver sem a ninguém abraçar.”

Com estas palavras foi-se Vento. O sol já havia se posto e as primeira estrelas começavam a brilhar no céu. Eu permaneci mais um pouco. Com saudades das palavras dele. Mais próximo de mim. 

De Orfeu

Niterói, 16 de abril de 2013

Para Willian Lizardo


Alma, prende-me dentro de ti.

Cada dia que se ergue, e lá se vão muitos, é seguido pelo estreitar de suas correntes em volta de meu coração. Chega a arrancar-me lágrimas e sangue: dói, alma; dói estar perto de você, dói estar longe. Sangro. Olho para meus pulsos, choro. Lágrimas de alegria pelo cativeiro. Saibas que meu cadafalso é tua existência, e sinto que a qualquer momento pode arrancar-me a cabeça. Se acontecer, serei um corpo inerte. Até lá, não hei de fugir, querido algoz. As paredes de minha prisão são mais desejáveis que os quartos palacianos dos monarcas que sempre passeiam por nossa prosa. 

Estamos envenenados, meu outro eu. Fomos feridos pelo frio branco da imensa lua, a única de nossas vidas, que acima de nossas cabeças lançava feitiços peçonhentos. Se tentarem nos salvar, o antídoto há de matar a ambos. Eu, porque estou em você, você, porque está em mim. Uma paráfrase montaigniana, tu que dizes que nós filósofos gostamos de apontar os dedos. 

Quem diria...

Se um dia nos avisassem que o amor desvairado e o desprezo que à ele fazia frente cederiam lugar à uma amizade para além da amizade, certamente zombaríamos de tal espalhafatão. Não compreendem, porque não é algo que se aconteça com frequência. O mundo precisa de milhares de anos para fazer surgir algo como isto. Montaigne, novamente... um beijo no coração, querido!

Escrevo cartas para alguém cujas palavras são desnecessárias. Linhas e mais linhas para alguém cujos versos sempre são mais profundos que os meus. És mestre poeta e músico, eu, retórico e sóbrio. Pago meus tributos à você, aedo e rapsodo. 

Um único erro, porém, cometeste ao escrever-me: ser por demasiado belo. Ourives das lestras, humilha-me a cada vírgula. Encurvo meus ombros a cada ponto. Temo largar a pena a cada parágrafo. "O que escrever depois de Proust?", lamentava Virgínia. Eu sou Virgínia. Tua beleza é teu calcanhar de Aquiles: bem saber que Virgem não deve brilhar mais que o Leão. Mas, que hei de fazer? Renunciei ao orgulho, preferi tua companhia. Não há o que fazer. Tua constelação te eleva e te aproxima dos deuses eternos, enquanto à mim, reserva-me as savanas áridas e poeirentas. Sempre te olharei de baixo, maldito. 

Temo por já estar sendo prolixo. Se escrevo, não escrevo para você, mas para que os outros saibam de você. Entre nós, l e n t a m e n t e  as palavras vão se a b o l i n... Permanecem os olhares certeiros, profundos, concordantes, e zombeteiros.

Escrevo um tributo, alma. Antes mesmo de morrerdes. Ofereço minhas libações, sacrificando no altar do amor para além-das-categorias os sentimentos que não consigo dizer, e que ainda não entendemos. E que assim vejam não a mim, mas à você, tu que és Orfeu, emissário das Musas, deusa dos poetas e dos heróis.

Da ansiedade


Niterói, 03 de dezembro de 2012

Impaciente espero uma pessoa que compartilhará comigo a solidão de uma existência. Sofro por esperar alguém que em breve estará ao meu lado, falando ao meu ouvido palavras de carinho, afagando docemente meu cabelo. Dói-me espera-la. Machuca-me, sobretudo, o fim deste amor: por indiferença, pelas brigas, simplesmente, pelo esfriamento, ou, puramente, pela morte. Leve poucos meses, leve longos anos: o amor é mortal por ser mortal seu hospedeiro.

Apesar das dores, espero. Levará um mês, ou, alguns anos... Quem sabe não venha!

Fico a escrever, pois sou ansioso e odeio esperar...

De meu amigo e de seu vôo


Niterói, 03 de dezembro de 2012

Por vezes deparo-me  com o coração palpitante de um amigo meu. Se não bastasse o coração querer fugir de sua prisão carnal, observo mãos suando, olhos inquietos, fala entrecortada. Diagnostico:  de um mal sofre meu amigo: paixão.

Arrebatado pela própria imagem refletida nesse belo ser que acabou de conhecer, encontra-se epifânico. De tão leve que está, seus pés não estão mais na terra; olha-nos de cima, lá do céu. O Sol que é esse amado faz com que meu amigo não deseje estar mais entre nós.  Ele quer luz, calor e altura. Tudo que costumeiramente não encontramos aqui embaixo. Meu querido amigo percebeu o quanto é bom voar. Levantou vôo.

É, entretanto, a altura que mete-lhe medo. Maior altura, maior a queda. Seu coração palpita de paixão e de medo. A paisagem lá de cima confere-lhe esperança, mas certo, para ele, é a dor de cair de um lugar tão alto. A queda é certo, a esperança, mãe da ilusão. Meu amigo está confuso.

Se aqui escrevo, escrevo ao meu amigo para dizer-lhe que não tenha medo. Não do medo do fracasso, pois esse está muito a frente e pode nem vir a suceder. Que não tenha medo de voar, de experimentar, de sentir a vertigem dos lugares altos. Não é necessário, entre nós, querido irmão e alma gêmea, os conselhos da temperança: nos conhecemos demais para receitar-nos tal preceito. Impulsivos e aventureiros que somos, resta-nos viver esses momentos e apreciar as novas paisagens. Merecemos algumas horinhas de Sol.

Não tenha medo, amigo! A distância é sua. E, se por acaso houver de cair, ora, estarei aqui embaixo para curar os ferimentos. Se isso acontecer, e é provável que aconteça – cedo ou tarde – da minha boca não sairá o veneno dos moralistas medrosos: “Eu te disse...”

Voe, e, quando estiver bem lá em cima, tire uma foto e envie por cartão postal... Vou querer saber como é esse novo Sol.

À Willian Lizardo

Ode à Tristeza


Niterói, 15 de novembro de 2012

Vós, os felizes, por que querem enxugar nossas lágrimas? Que tirania tomou conta de suas mentes para que pensassem que somos apenas melancólicos? Que ditadura é essa que querem estabelecer? Felicidade a qualquer custo, eis vosso emblema...

Embriagados pela alegria saem pelas ruas bradando que a felicidade deveria virar rotina. Invadem-nos as tabernas onde pessoas choram, ao sabor de um whisky, os males que a vida os trouxe. Cantam músicas de um felicidade eterna no além, aos pés de um moribundo no leito de um hospital. “Deixai os mortos sepultar os mortos” é o mantra que entoam nos funerais. Diante da mãe de seu filho natimorto, tentam consolar sua dor fazendo-a acreditar que ao nascer o próximo filho, as lágrimas por este não farão mais sentido. Chamam artistas e filósofos de depressivos por enxergarem beleza na tristeza, quando, para vocês, apenas a alegria é digna do Belo.

Quantos desvarios tomaram conta de vocês!

Que seria da alegria se não houvesse a tristeza? Reinando soberana sobre os sentimentos, a felicidade, eternamente sentada em seu trono, tornar-se-ia aos poucos parca. Preto e branco seria sua bandeira. As festas, tão rotineiras, comportariam corpos que já não se sustentam de tanto dançar; os sorrisos, tão comuns, deixariam de ser a expressão de um coração agraciado por alegria efêmera; na face de cada pessoa haveria uma máscara de felicidade: o semblante da própria tirania.


Os corações não aguentariam o frenesi dos batimentos que acompanham aqueles momentos que julgamos ser possível morrer de tanta felicidade. Não haveria ouvido que aguentasse as eternas gargalhadas que ecoariam onde quer que estivéssemos. Existindo somente a alegria, ela própria perderia o seu sentido.

Somente a loucura poderia conceber uma vida em que não houvesse o sofrimento. Se vida terrena assim já seria insuportável, quem dirá uma vida eterna, na presença de pessoas e de um Deus tão felizes que desejo suicidar-me só de cogitar tal mundo fictício.

Creia-me, a tristeza é o grande tempero do mundo. A tristeza é a mãe de toda a felicidade que possamos almejar. Por causa dela, lançamo-nos na busca por aquilo que nos faz bem. De tanto chorar, uma hora enxugamos nossos rostos e saímos para a luz do Sol. A tristeza é a chuva acalentadora num solo rachado por tantas imprudências que leva-nos a felicidade. Se não fosse pela tristeza, o pintor não teria posta na tela aquela lágrima brilhante no rosto da moça que chora sozinha em meio a multidão. Se não fosse a tristeza, nunca teríamos percebido essa moça, nem nos encontrado nela; se assim não fosse, nem mesmo teríamos a sensibilidade que tanto admiramos. Se não existissem corações despedaçados, não haveria o samba que alegra o povo tão oprimido das cidades. Se não houvesse a tristeza não haveria Homero, Horácio, Ovídio, Dante, Shakespeare, Montaigne, Jane Austen, Virgínia Woolf, Stendhal, Dostoiévski, Tolstói, Proust, Oscar Wilde, Fernando Pessoa, Drummond de Andrade, Florbela Espanca, Vinicius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Villa-Lobos, Cartola, Adoniram, João Gilberto, Elis Regina, Renato Russo, Cássia Eller, e tantos outros que me cansaria só de escrever seus nomes. Se reinasse a felicidade, o que seria da arte? Por Deus, se não houvesse a tristeza, não haveria poesia...

A tristeza não precisa ser soberana. Porém, não pode deixar de existir. A tristeza não deixa a vida sem graça, pois, ela é a própria graça quando nossos corações estão alegres e conseguimos rir das tragédias passadas. A tristeza é irmã gêmea da alegria, embora elas não se deem muito bem, andando sempre separadas.

Quando tristes, não queremos consumir nossos dias, queremos prolonga-los para vermos no espelho aquele belo sorriso tão fugidio. A tristeza que acompanha a tragédia é mãe das mais belas filosofias. Quando tristes queremos estar cada vez mais tristes para que ela, de repente, deixe de existir, deixando-nos a alegria por estarmos vivos. A tristeza junta novamente os amantes que perdidos estavam em suas alegrias egoístas: basta que o amado chore, para que nasça no coração do amante aquele amor novo e imaculado. A tristeza aproxima dois corações marcados pelo sofrimento.

Chorar nos torna humanos. Pedras, árvores, rios, céus, mar e tudo quando é divino não chora. Eles são perfeitos, mas não belos quanto os seres humanos e os animais. Nós coroamos a Natureza por seremos capazes de derramar lágrimas e sorrir quando elas secam.

Por isso, não venham me dizer que não posso estar triste. Não me venham com essa loucura: um coração aos pedaços é pai de tudo quanto é encantador. A tristeza é bela, pois é belo o ser humano que, sofrendo, encontra a si mesmo.

A alegria está-nos reservada para quando leves estiverem nossos sentimentos. Seremos capazes de sermos felizes quando, após muito sofrer, compreendermos o sentido de nossa vida. Lá, seremos verdadeiramente felizes, mesmo que isso aconteça segundo antes de morrermos.

Até lá, não quero ser completamente feliz. Quero estar incompleto, imperfeito, dando espaço para a luta eterna entre as irmãs gêmeas, fazendo brotar em mim um mundo novo, explodindo em cores. A perfeição não encanta, pois é imóvel e imutável. Já a imperfeição, personificada na tristeza, pode mover-nos... E quão belo somos ao caminharmos.

Matem a verdade que diz que a felicidade precisa reinar! Favor maior nunca mais farão. Que reine a Vida: com ela suas filhas: a alegria e a tristeza. E, quando alguém que não entende nada sobre os seres humanos vier, aconselhando-te a parar de chorar e a deixar de sofrer, diga-lhe que sobre a Vida ele tem muito a aprender. Afinal, os antigos, milhares de anos antes de nascer aquele que vos escreve, tornaram-se sábios ao compreenderem que se é para nos alegrarmos, que nos alegremos, porém, quando for para estarmos tristes, que choremos com toda nossa alma.

“... O dia da morte é melhor do que o dia do nascimento.


É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério!

A tristeza é melhor do que o riso, porque o rosto triste melhora o coração.

O coração do sábio está na casa onde há luto, mas o dos tolos, na casa da alegria." 

(Eclesiastes 7:1-4)

Do nosso fim

Niterói, 15 de novembro de 2012

"O que vejo dentro desses olhos? Vamos, abra-os para mim, eu quero ver... Sei que as lágrimas embaçam teu olhar, mas, por favor, abra-os, por mim...

Eles são de um azul profundo. Azul como o coração do oceano. Suas lágrimas fazem-me acreditar que de dentro deles todo esse oceano está prestes a se derramar. Vamos, minha querida, não segure... deixe que venham como ondas. Permita-me, apenas, contemplá-los na tormenta de seus sentimentos.

Eu sei, não precisas me dizer. A dor de todo o mundo encontra-se dentro destes pequenos olhos. Todo o pânico, todo o desespero. É, meu amor, não fomos bons o suficiente, e agora tudo está prestes a acabar. Tentamos... sinto dizer-lhe... não conseguimos. Sim, podes chorar...

Disseram-me, quando pequeno, que faz bem ao coração romper o dique, deixar tudo vir à tona. Contaram-me, e eu eu pude aprender. Triste é não mais termos a quem ensinar o que nossos antepassados com tanta sabedoria nos falaram. Fim da linha, minha querida. Não haverá mais nós... Éramos jovens, imprudentes, desejosos demais em gastar nossos dias. Vivemos, nos consumimos... não nos resta muito mais tempo.

A natureza cansou dos nossos crimes. A mãe Terra chama-nos de bastardos. Prepara-nos um castigo que não tarda. Choras? Console-se com minhas palavras: haveria de ser assim, meu amor. De ouvidos tapados, não pudemos ouvir suas lamentações; de séculos em séculos nossa mãe chorou. Eis que se levanta: em fúria e morte. Podemos chamá-la de tudo quanto é nome: cruel, impiedosa, insensível, assassina; nunca, porém, poderemos chamá-la de injusta ou de impaciente. Com toda naturalidade que é própria, trouxe-nos à vida, fez com que crescêssemos em seus braços. Já adultos, fomos ingratos. Malditos filhos bastardos...

Derrubamos as árvores das florestas que um dia foram nossas casas, extinguimos os animais e os peixes que serviram-nos de alimento, poluímos o ar que com oxigênio tanto nos encheu os pulmões, escavamos fundo demais suas montanhas em busca de metal que nada nos valerá agora. Decidiu, ela, mãe justa, por nosso fim... mesmo com certa tristeza...

Somos incorrigíveis, minha querida. Olhe-me nos olhos. O que vê? Vês um verde de doentia esperança... esperança de dias que nunca chegarão à nós. O verde esperançoso dos meus olhos ficarão sem respostas. Não chores, querida, só irá machucar-me mais. Não é apenas culpa sua...

Olhe ao redor de você! Caos, meu amor. Casas inteiras destruídas, prédios em chamas, lojas saqueadas, jardins à tão pouco floridos, agora, pisoteados. As pessoas correm sem rumo por todos os lados. Para onde vão? Não há para onde ir... Nem mesmo os poucos animais que sobraram foram poupados pelo caos. Eles sofrem: pagam por um crime que nunca cometeram. Resta-nos a destruição.

Enxugue seus olhos. Observe a mãe com o filho nos braços, perceba o pavor: com uma mão segura o filho, e com a outra tapa a boca que de tanto espanto não foi possível fechá-la. Tudo ao redor dela é caótico: vê, mas recusa-se enxergar. Onde está o marido? Talvez tenha saído para buscar ajuda, ou para pegar alguma comida, ou, quem sabe, esteja preso na cadeia, ou tenha se matado de desespero, ou, ainda, morto e soterrado debaixo dos escombros de um desses tantos arranha-céus que tombaram. Quem poderá responder-lhe?

Olhe para o outro lado... O que vê? Carros batidos, pessoas brigando, gritos por socorro, postes de luz despedaçados, uma jovem aos prantos sentada na calçada daquilo que um dia foi a casa de seus pais, crianças de rua desamparadas - como sempre estiveram -, idosos que já esperando a morte estão surpresos por ela chegar assim.

Esperança? Em que? Para quê, meu amor? Ei, ei, não chores mais... Tire suas mãos do rosto e olhes para mim... Um pouco nos resta!

Seus olhos, de tanto chorar, tornaram-se castanhos. Estás de luto! Sinto que ele tomou-lhe o coração inteiro. Escuro seus olhos, negro seu coração. A vida contida em seus olhos esvaiu-se com as lágrimas. Choras-te suas próprias forças. Console-se, porém. Não se deixe enganar com as minhas palavras. Findamos nossos dias por nossa própria ambição. Eu, dentre muitos, fui o mais ambicioso, e, disso, morrerei também eu.

Não há por quê escondermos os rostos marcados pela culpa. De nada nos adiantará. Somos velhos, embora novos por fora. A proximidade do fim envelheceu-nos: o que levaria dezenas de anos para ser ensinado, levou dias para ser aprendido. Nos tornamos sábios de uma hora para outra. Contudo, de que adianta-nos? Amanhã já não estaremos mais aqui. Estamos só: nós e o caos.

Perceba, meu amor, que o que há por detrás do caos é o luto. Morreram todos os nossos heróis: morta está a pátria, a liberdade, a democracia, a honra, a moral, a ciência... morta está, por deus, a verdade. Estamos de luto por tudo que construímos, estamos de luto por nós mesmos. Sobreveio-nos o caos ao percebemos a morte: não sabemos mais o que fazer com aquilo que ainda vivo já foi sentenciado de morte. Fomos lançados num terreno que não conhecemos. Nos perdemos. Nosso caos é o luto por nossa morte antes mesmo de termos sido enterrados.

Lágrimas... quantas lágrimas correm por sua face, minha garotinha. O tempo está esgotado; nossa mãe Terra decretou nosso fim. Porém, não conseguiu matar-nos a sensibilidade. Isso pelo menos não perdemos. Vejamos e capturemos, então, esse último pôr-do-sol. Que seja esse o nosso epitáfio. A Terra não nos quer mais em seus braços. Chegamos ao fim de nossa raça. E, se nos é permitido ainda sonharmos tão próximos do fim, esperemos que os próximos filhos sejam melhores que nós."

Do desespero de amar

Niterói, 26 de outubro de 2012

"O primeiro amor é um doce desespero..." (My week with Marilyn - Film)

Talvez seja necessário o mergulhar profundo no doce desespero que é o primeiro amor...

Não faltam palavras neste caderno que descrevam o intenso desespero que é amar pela primeira vez e ver esse imaculado amor acabar de uma hora para a outra. Dias, semanas, meses, anos, não importa: há de acabar, restando o doce e amargo sabor do sonho que um dia foi real e hoje é apenas saudade.

Ausente está a necessidade de refazer os antigos passos do primeiro amor. Observo silenciosamente à distancia. Na lembrança sempre tão dolorosa que acompanha tudo o que um dia foi, a presença do desespero que ainda não ousava apossar-se, mas que ao largo sempre caminhava. Desespero utópico naqueles dias... verdadeiro no final.

Fundido ao corpo, penetrando pelos poros, correndo dentro das veias, esmagando o coração. É ele, o desespero a tornar-me mais prudente, menos obsessivo, mais desconfiado, certamente mais sincero à nova paixão encontrada na estrada daquilo a que chamamos de Vida.

"Não pedirei que não chores, pois nem todas as lágrimas são um mal...", ouvi certa vez da boca de um sábio que fumava cachimbo nas bordas de um porto: lágrimas de um desesperado, sabedoria de um homem de coração aos pedaços...

No final de tudo pode ser que nada faça sentido, e creio que realmente não fará. Por ora, acalma as dores de um coração maltrapilho. Que infâmia há em dar alento ao viajante que de tanto vagar possui os pés cansados, os ombros encurvados, a face desacreditada? Deixe que descanse enquanto houve de durar o seu repouso... A quimera de ter finalmente chegado ao lar pode trazer-lhe alguma paz, mesmo que efêmera. À sua verdadeira casa, em breve verá, ainda não chegas-te: precisará muito caminhar antes de se aperceber que durante todo esse tempo carregou consigo o que sempre procurou. Até lá, deixa-lhe que o desespero sirva-o como guia, e não recuse-lhe abrigo quando houver de bater em sua porta...

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